Lei Francesa de Vigilância
Devida Diligência: uma realidade normativa na Agenda de Direitos Humanos e Empresas
Texto por: Ana Laura Figueiredo
Nessa nova série do blog vamos abordar o instituto da devida diligência, incorporado pelos Princípios Orientadores da ONU, e algumas normativas, aprovadas ou em discussão, que se tornaram referência para o estudo do tema e buscam transformar sua aplicação. Ao longo da série, iremos analisar a Lei Francesa de Vigilância (Loi de vigilance), a Diretiva da União Europeia (Directive on Corporate Sustainability Due Diligence), a Lei de Devida Diligência Alemã (Act on Corporate Due Diligence Obligations in Supply Chains) e, por fim, outros instrumentos normativos que não tratam exclusivamente de devida diligência, a exemplo do PL 572/2022, tópico de outra série em que explicamos a Agenda Nacional e seu processo de construção.
Contextualização
Nesse post o foco de análise será a Lei Francesa de Vigilância (Loi de vigilance), também conhecida como Lei 399/2017, que foi aprovada em 23 de março de 2017 após um longo período de discussões. Sua principal motivação foi o desabamento de Rana Plaza em 2013, um prédio localizado em Bangladesh que sediava diversas fábricas de vestuários com produção destinada a marcas renomadas, entretanto, a baixo custo em razão da má remuneração e das condições de trabalho insalubres. O caso que ficou conhecido mundialmente, após a morte de mais de mil pessoas, serviu para fortalecer o debate sobre a atividade empresarial e a responsabilização das transnacionais frente às violações de direitos humanos, já que as normativas incentivadas pelos Princípios Orientadores reforçam a voluntariedade e não trazem nenhuma mudança no paradigma da agenda de empresas e direitos humanos.
Avanços e limitações da “Lei de vigilância”
Dentre as disposições da lei temos o estabelecimento de obrigações de devida diligência em matéria de direitos humanos, que não são limitadas a produção de relatórios e divulgação de informações. Além disso, a lei cobre a proteção tanto dos direitos humanos quanto do meio ambiente de maneira generalizada e estende as obrigações a terceiros envolvidos. Para efetivar tais obrigações, está definido o dever das empresas de implementar um plano de vigilância que atinja empresas subsidiárias, subcontratantes e fornecedoras, ampliando o dever de devida diligência à cadeia produtiva.
Junto a isso, a lei garante o monitoramento das obrigações mencionadas, a sanção de possíveis violações e permite que os planos de vigilância passem por revisão judicial mediante requisição de qualquer parte que tenha interesse, como organizações não-governamentais.
Por outro lado, existem alguns limites quanto à sua aplicação. O primeiro deles se relaciona à questão da extraterritorialidade e do forum non conveniens, já que a lei tem sua aplicação regulada pelas regras de direito internacional privado, o que significa que ela será limitada às cortes francesas.
O segundo limite é em relação aos critérios para alcance das empresas, assim, a lei somente será dirigida a empresas com sede na França, que se estruturam como sociedade anônima, sociedade em comandita por ações ou empresas públicas da União Europeia e que tenham ou cinco mil empregados na França ou dez mil espalhados pelo mundo.
Por fim, o terceiro limite se dá pela maneira com que estão dispostos os direitos e as obrigações, já que a ideia de mitigação dos riscos ainda está presente à medida que a lei apenas exige que as empresas evitem violações de direitos humanos caracterizadas como graves, o alcance da cadeia produtiva é limitado pela exigência de relação comercial estabelecida e não existe previsão de inversão do ônus da prova, instituto muito importante para agenda que reconhece o desequilíbrio de força entre empresas e atingidos.
Caso Total Energies
Em 2006 foi descoberta uma reserva de petróleo no rio Albertine que está localizado dentro do Parque Nacional de Murchison Falls em Uganda, área que foi considerada Unidade de Conservação de Leões.
A Total, através de sua subsidiária Total E & P Uganda, vem liderando o projeto Tilenga, que pretende extrair 200.000 barris de petróleo por dia por meio de 400 poços com 34 perfuradoras, sendo 10 delas localizadas nas áreas de reserva natural do parque mencionado. É importante mencionar que Uganda é um país sem litoral, o que leva à necessidade de construção de oleodutos para realizar o escoamento e ao envolvimento da empresa japonesa Toyota Tsusho Corporation nesse empreendimento. Só o projeto Tilenga vai deslocar mais de 31.000 pessoas, visto que o oleoduto vai passar por 178 vilarejos na Uganda e 231 na Tanzânia, realizando a rota pelo sul do país e evitando territórios com potenciais inseguranças relacionadas ao terrorismo.
Nesse caso temos o envolvimento não só da Total Energies, mas das subsidiárias e subcontratadas Total E & P Uganda, Toyota Tsusho e China National Offshore Oil Corporation (CNOOC Group), além da atuação do Projeto Tilenga junto ao Projeto desenvolvido pela Total East Africa Midstream B.V. (TEAM), o EACOP (East African Crude Oil Pipeline).
Dentre os impactos já produzidos e aqueles previstos com a continuidade do projeto, temos a perda das terras dos moradores locais, a desvantagem econômica durante a negociação entre moradores e empresas, o rompimento forçado do vínculo com o território, e a poluição dos recursos utilizados pelos habitantes. Os danos ambientais também são diversos como a liberação de gases inflamáveis e tóxicos, vazamentos de insumos tóxicos, destruição da fauna e flora local e possíveis explosões. Com o avanço das tratativas e início das operações no país pode-se perceber o descumprimento de leis domésticas e normativas internacionais, o que gera precedentes negativos no país frente à atividade empresarial.
Além dos impactos enumerados, houve a perseguição e prisão de jornalistas e testemunhas que buscavam denunciar e relatar as violações de direitos humanos pelas empresas, levando à militarização da zona petrolífera já que o governo do país está aliado ao empreendimento.
Com apoio na Lei de Vigilância, as organizações Les Amis de la Terre France, The National Association of Professional Environmentalists (NAPE) e Africa Institute for Energy Governance judicializaram o conflito nas cortes francesas. Os principais pontos das decisões proferidas são a atribuição de competência ao Tribunal Comercial, a dificuldade de determinar as violações já que a lei não possui um rol taxativo de direitos humanos e o ônus da prova que recai sobre os atingidos, o que definitivamente dificulta o procedimento já que a população se encontra em situação de vulnerabilidade. Logo, torna-se perceptível a dificuldade de efetivar a responsabilização das empresas e a proteção devida dos direitos humanos e do meio ambiente, restando ainda lacunas que revelam a importância da aprovação de um Tratado Vinculante de Empresas Direitos Humanos.
No próximo post da série daremos sequência à análise de normativas sobre devida diligência em matéria de direitos humanos dando enfoque à Diretiva da União Europeia (Directive on Corporate Sustainability Due Diligence). Traremos novamente pontos sobre a aplicação e seus limites, além do caso da indústria do gás em Cabo Delgado que tem o envolvimento de diversas transnacionais europeias e serve para elucidar os temas analisados.
Glossário
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