Origem e mudanças na implementação da Devida Diligência

Devida Diligência: uma realidade normativa na Agenda de Direitos Humanos e Empresas

Texto por: Ana Laura Figueiredo

 

Nessa nova série do blog vamos abordar a devida diligência, incorporada pelos Princípios Orientadores da ONU, e algumas normativas aprovadas ou em discussão que se tornaram referência para o estudo do tema e buscam transformar sua aplicação. Desse modo, iremos analisar a Lei Francesa de Vigilância (Loi de vigilance), a Diretiva da União Europeia (Directive on Corporate Sustainability Due Diligence), a Lei de Devida Diligência Alemã (Act on Corporate Due Diligence Obligations in Supply Chains) e, por fim, outros instrumentos normativos que pretendem abordar a responsabilização na cadeia de valor para além da devida diligência, a exemplo do PL 572/2022, tópico de outra série em que explicamos a Agenda Nacional e seu processo de construção. 

 

Essa série, além de tratar de um tema muito relevante e atual da Agenda de Direitos Humanos e Empresas, está diretamente ligada ao atual projeto de investigação desenvolvido pelo Homa “Repercussões da Lei de Devida Diligência Alemã no Brasil”.

 

Origem da Devida Diligência

 

O dever de diligência surge como mecanismo de minimização de riscos para o setor corporativo, assim, buscava-se a redução de impactos na gestão econômica das empresas. Nesta série trataremos da devida diligência em matéria de direitos humanos, esta que apesar de estar inserida no contexto empresarial, se diferencia em relação ao objetivo que, nesse caso, é a análise prévia dos riscos da atividade com o fim de prevenir violações de direitos humanos. 

 

Essa utilização passa a existir a partir do acirramento da globalização nos anos 80, junto com o desenvolvimento da Agenda Global de Direitos Humanos e Empresas e com influência da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), como uma necessidade de garantir maior transparência no funcionamento das empresas. Essa transparência seria alcançada pelo mapeamento da cadeia produtiva, já que as companhias passaram a terceirizar grandes partes das suas cadeias de produção e suprimento. Nesse sentido, o automonitoramento e a responsabilidade social corporativa são a base do instituto nesse momento inicial e seu cumprimento está diretamente ligado à imagem da empresa.

 

Após seu surgimento, houve um período de acirramento do neoliberalismo em que o debate sobre a questão ficou esquecido e apenas foi retomado no âmbito das Nações Unidas por influência do Pacto Global após os anos 2000. 

 

Previsão nos Princípios Orientadores

 

O que se percebe nesse momento é a retomada do tema a partir da lógica voluntarista já que as propostas vinculantes não eram bem aceitas, e a aprovação dos Princípios Orientadores sobre Empresas e Direitos Humanos desenvolvidos por John Ruggie em 2011.  A devida diligência em matéria de direitos humanos  passa a ter um parâmetro: é um processo que deve identificar, prevenir, mitigar, monitorar e prestar contas sobre os riscos e impactos da atividade empresarial. Os princípios, que fazem parte dos instrumentos internacionais de soft law por não possuírem força normativa, estabeleceram apenas a responsabilidade de respeitar os direitos humanos com a limitação dos riscos, reforçando a supremacia da lógica empresarial em que os riscos são inerentes à sua atividade e o desenvolvimento seria compensatório.  

 

Os princípios 16 a 24 são os que mais se relacionam à devida diligência, pois buscam estabelecer os mecanismos de automonitoramento e compromissos que as empresas devem seguir para prevenir e mitigar seus ‘impactos’. O Princípio 17 faz menção explícita sobre a temática: 

 

“A fim de identificar, prevenir, mitigar e reparar os impactos negativos de suas atividades sobre os direitos humanos, as empresas devem realizar auditorias (due diligence) em matéria de direitos humanos. Esse processo deve incluir uma avaliação do impacto real e potencial das atividades sobre os direitos humanos, a integração das conclusões e sua atuação a esse respeito; o acompanhamento das respostas e a comunicação de como as consequências negativas são enfrentadas. A auditoria (due diligence) em matéria de direitos humanos:

  1. Deve abranger os impactos negativos sobre os direitos humanos que tenham sido causados ou que tiveram a contribuição da empresa para sua ocorrência por meio de suas próprias atividades, ou que tenham relação direta com suas operações, produtos ou serviços prestados por suas relações comerciais;
  2. Variará de complexidade em função do tamanho da empresa, do risco de graves consequências negativas sobre os direitos humanos e da natureza e o contexto de suas operações;
  3. Deve ser um processo contínuo, tendo em vista que os riscos para os direitos humanos podem mudar no decorrer do tempo, em função da evolução das operações e do contexto operacional das empresas.”

 

Logo após a aprovação dos princípios de John Ruggie, a criação de Planos Nacionais de Ação passou a ser incentivada para disseminar e incentivar a aplicação destes, porém com a mesma característica voluntarista. Embora muitos países tenham criado seus PNAs, como foi analisado em outra série do blog, o que se percebeu foi a construção de instrumentos sem legitimidade democrática e participativa e, mais do que isso, não houve adesão por parte das empresas. Como consequência, diversos Estados passaram a discutir e aprovar leis específicas de devida diligência, tornando seu cumprimento obrigatório. O conteúdo e os níveis de aplicação das leis, ainda que baseados no mesmo mecanismo, é diverso, o que nos leva a análise de algumas normativas específicas ao longo dessa série. 

 

Importância de um marco regulatório internacional   

 

Mesmo que as normas revelem um avanço na responsabilização das empresas frente à proteção dos direitos humanos, são muitas as lacunas relacionadas à questão da extraterritorialidade e a limitação do alcance na cadeia produtiva, à arquitetura da impunidade e captura corporativa, à falta de garantia quanto à reparação integral, além da falta de adesão em razão da desvantagem competitiva. 

 

Logo, a aprovação de um Tratado Internacional Vinculante sobre Empresas e Direitos Humanos ainda é muito importante para que haja um escopo maior e mais uniforme de aplicação da devida diligência e de outros mecanismos preventivos e sancionatórios. 

 

No próximo post realizaremos uma análise da Lei Francesa de Vigilância, Lei 399/2017, uma das primeiras a regular o tema e, principalmente, uma lei que já foi testada em sua aplicação. O caso em questão envolve a TotalEnergies SE, uma  empresa petrolífera francesa que pretende realizar extração de petróleo em Uganda e que só nessa fase preparatória já violou direitos humanos da população local. 

 

Glossário

  • Soft law: expressão utilizada no Direito Internacional Público para denominar dispositivos que não possuem poder coercitivo, de modo que não criam obrigações e passam a ser adotados de maneira voluntária

 

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