O que você precisa saber sobre o “rascunho revisado” para a 9ª sessão de negociação do Tratado sobre Empresas e Direitos Humanos

Formalmente, o documento é intitulado instrumento juridicamente vinculante para regular a atividade de empresas transnacionais e de outras empresas no âmbito do Direito Internacional dos Direitos Humanos 

Texto por: Ana Laura Figueiredo

Essa semana, entre os dias 23 e 27 de outubro, os Estados retomaram as negociações no âmbito do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, em Genebra,  para discutir o rascunho revisado (“revised draft” ou “borrador revisado”) do Tratado sobre Empresas e Direitos Humanos. Essa é a nona sessão do Grupo de Trabalho Intergovernamental de Composição Aberta (OEIGWG, sigla em inglês) instaurado, a partir da assinatura da Resolução 26/9 em 2014. 

A primeira questão a ser respondida é: qual texto estamos analisando e discutindo nessa sessão? O documento publicado buscou unir as duas propostas discutidas durante a 8ª sessão de negociações, o terceiro “draft” e o texto chamado de “Chair’s proposal”, contudo, as escolhas feitas pela Presidência restam nebulosas dada a falta de transparência e de critério adotado para definir a metodologia de trabalho, já que a versão revisada contempla proposições com menor número de aderência e utiliza como texto basilar de alguns artigos aquele proposto pela liderança do GT (OEIGWG).  Assim, o texto discutido gera diversas controvérsias que preocupam a sociedade civil e que foram alvo de disputa pelas delegações durante o primeiro dia de negociação do Tratado.  

Com isso em vista, vamos destacar as principais mudanças textuais e suas implicações considerando os artigos de maior relevância quando se trata da aplicabilidade do instrumento juridicamente vinculante e, por consequência, da proteção dos direitos humanos, ressaltando também os principais pontos a serem considerados pelas delegações comprometidas com o processo e pelas organizações que integram a Campanha Global para Reivindicar a Soberania dos Povos, Desmantelar o Poder das Transnacionais e Dar Fim à Impunidade. 

Preâmbulo 

Desde o preâmbulo podemos perceber uma questão sistemática que contempla o documento como um todo que é a falta de descrição e precisão de diversos dispositivos. O que por um lado aparenta ser um ponto positivo para a incorporação de um número maior de casos, por outro, na prática, o que se faz possível prever é a utilização dessas disposições generalistas como forma de evadir sua aplicação, o que gera lacunas e dificulta a aplicabilidade em casos concretos dada as diferenças existentes entre as legislações e sistemas jurídicos nacionais. 

O PP3 retira menções a declarações internacionais, como a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Camponeses, das Camponesas e outras pessoas que trabalham em Áreas Rurais, ao direito internacional humanitário e à primazia dos direitos humanos sobre Tratados de Comércio, o que representa uma das grandes perdas desse dispositivo.  Além disso, retira a menção ao Pacto de direitos sociais e culturais, com argumento de que muitos Estados não ratificam, o que não se justifica tendo em vista que são pactos adotados internacionalmente e já estabelecidos.

Já o PP8 no novo rascunho revisado, por exemplo, não descreve mais todas os possíveis níveis de discriminação quando se trata de questões de raça, cor, sexo, língua, religião, deficiência, política, etinia ou nacionalidade, propriedade, nascença, dentre outras. Essa retirada exemplifica a problemática da falta de descrição e especificidade do documento, pois isso abre margem para uma interpretação extensiva condicionada à legislação interna de cada país que ratificar o instrumento.

Artigo 1 –  Definições

O artigo destinado às definições mantém as mesmas questões de linguagem levantadas nas últimas sessões, como a necessidade de adoção do termo violação ao invés de abuso, a inclusão das comunidades e atingidos e atingidas na definição de vítima, e, sobretudo, o esclarecimento sobre a especificidade das atividades transnacionais que englobam não só a empresa matriz, mas toda a cadeia de produção bem como investidores e instituições financeiras. 

Artigo 2 –  Propósito

Assim como em outros dispositivos do texto, a mudança textual da alínea (b) que trata da substituição do termo “obrigação” para “responsabilidade” traz a tona mais uma vez as críticas do pragmatismo principiológico considerando que, juridicamente, a obrigação não necessita de aferição judicial pois emana naturalmente de um texto jurídico, enquanto a  responsabilidade, no texto tratada como “liability” está condicionada à aferição, após a violação, por meio de uma análise judicial do caso concreto, além do mais o conceito pertence ao ramo do direito privado. Cabe ressaltar que apesar da grande perda, na antiga versão do texto a única obrigação prevista era a de respeitar os direitos humanos. 

Artigo 3 – Escopo

Quando se trata do escopo de aplicação, é importante evidenciar que com a adoção da terminologia  “all business”, retira-se a menção a transnacionais, que quando é feita é no sentido de caracterizar um tipo de atividade. Mais uma vez a sociedade civil identifica uma perda nesse caso em que a aparente amplitude textual torna ainda mais complexa a identificação da cadeia de produção, por justamente faltar precisão dos elementos característicos de vínculo. 

Artigo 4 – Direito das Vítimas / Artigo 5 – Proteção das Vítimas

Os dois artigos que seguem tratam do direito e da proteção das vítimas. Apesar das mudanças serem em sua maioria especificidades linguísticas, cabe mencionar que não há uma garantia ao acesso pleno à informação no sentido de permitir e facilitar o acesso a documentos das empresas, assim como, as próprias empresas não recebem menção nesses dispositivos. 

Artigo 6 – Prevenção

Ao tratar da sessão destinada às medidas de prevenção, é importante realizar uma diferenciação entre o que seriam medidas de prevenção e de precaução. Para o sistema jurídico a diferença basilar está na possibilidade ou não de previsão das consequências. Nesse sentido, no âmbito do direito ambiental quando fala-se do princípio da prevenção presume-se que os resultados produzidos pela atividade são passíveis de previsão, ou seja, qualquer impacto adverso decorrente da atividade empresarial não estaria contemplada nesse rol de prevenção e, portanto, estaria ainda mais distante das previsões destinadas a responsabilização. Logo, defendemos que as medidas de prevenção devem ser expandidas com a inclusão de assessorias técnicas e o estabelecimento de um Fundo para as vítimas, por exemplo, para que, assim, as possíveis lacunas sejam reduzidas. 

Para além dessa observação inicial, nesse artigo deve ser retomado o escopo das empresas transnacionais defendido pelo Paquistão, Camarões e Irã nas últimas sessões, além de fortalecer o que estão descritas como medidas de devida diligência no 6.4, tendo em vista de que se trata de uma definição mais débil do que aquela imposta pelos Princípios Orientadores (UNGP). Junto a isso não há previsão de monitoramento externo, consultas à comunidade em geral, participação de sindicatos e outras ações necessárias ao fortalecimento do mecanismo da devida diligência para que ele não se restrinja ao objetivo pragmático de análise de relatórios frutos do automonitoramento e à uma obrigação de meio sem qualquer eficácia preventiva.  

Como concretização dessa crítica, o artigo 6.7 sofreu modificações e foi retirada a previsão de que os Estados deveriam criar sanções para o não cumprimento da devida diligência, a exemplo de multas ou de não participação em licitações e contratos públicos, e de que mesmo que cumprissem a devida diligência as empresas poderiam ser sancionadas de acordo com o artigo 8. 

Artigo 7 – Acesso à reparação 

Os últimos artigos que serão comentados representam uma tríade considerada como a medula desse instrumento juridicamente vinculante. 

O acesso à reparação, tópico do artigo 7, sofre uma mudança no sentido de dar mais espaço a cortes e tribunais arbitrais, agências e órgãos administrativos estatais. Isso significa que o acesso à reparação não implica necessariamente na garantia de acesso ao sistema judiciário para uma reparação judicial, algo que se distancia do entendimento do Sistema Interamericano de Justiça. Esse desvio de enfoque gera incertezas quanto à garantia da reparação integral, por exemplo, considerando que já existem relatórios produzidos por experts da Organização das Nações Unidas que identificam impactos desastrosos ao meio ambiente decorrentes de decisões tomadas por tribunais arbitrais. 

Outra preocupação neste artigo está na substituição do que antes requeria a adequação do sistema legal nacional ao Tratado para a adequação da própria aplicação ao que já é vigente nos Estados (7.2). A inversão do ônus da prova não é mais uma garantia de acordo com o 7.4 (d), pois a aplicação é facultada à análise do juiz, e existem outras perdas no que tange à aplicação do forum non conveniens e a retirada da questão de gênero no processo. 

Artigo 8 – Responsabilização (“Legal Liability”)

Para tratar da responsabilização é válido mencionar que a tese adotada e defendida pela Campanha é a da responsabilidade solidária, que apesar de nunca ter sido inserida no texto, no cenário jurídico brasileiro é possível encontrar jurisprudência com sua aplicação.  

Desse modo, o art 8.2 apresenta uma dimensão extremamente subjetiva e de difícil comprovação do nexo causal, o que se afasta ainda mais da responsabilidade solidária. O artigos  8.6 e 8.7 da antiga versão do rascunho (3rd draft) valem ser mencionados pois estabeleciam a previsão da responsabilidade baseada na precaução quando se tratam de atividades de alto risco e da responsabilidade da empresa matriz ao longo da cadeia de produção independente do cumprimento da devida diligência. 

Artigo 9 – Jurisdição 

Para encerrar essa breve análise, é importante dizer que o artigo destinado à jurisdição é de extrema relevância para a concreta aplicação do Tratado, já que não basta prever um extenso rol de direitos das vítimas se não houver mecanismos judiciais que assegurem sua materialização. 

Portanto, o escopo de aplicação jurisdicional ainda está longe de ser o almejado pela sociedade civil enquanto representantes das comunidades, atingidos e atingidas interessados no processo. Além de não ser assegurado o forum necessitatis, existe de certa forma uma previsão do forum non conveniens no 9.3 (a)  e no 9.4 ao abordar o caso de litispendência internacional, que ocorre quando há um procedimento em curso em outro país. Para solucionar a litispendência é adotada a teoria do direito internacional privado “better law approach” que mantém o processo que já está em curso, a menos que exista um tratado específico entre os Estados envolvidos.  

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