NEM DEVIDA NEM DILIGENTE: A DIRETRIZ DA UNIÃO EUROPEIA, UMA PSEUDO-REGULAMENTAÇÃO INSUFICIENTE

Reprodução do posicionamento da Campanha Global para Recuperar a Soberania dos Povos, Desmantelar o Poder Corporativo e Acabar com a Impunidade
25 de abril de 2024

 

As prioridades da ação externa da União Europeia (UE) estão definidas: aumentar os fundos públicos para a guerra e reativar a indústria militar, continuar construindo a “fortaleza Europa” por meio da externalização das fronteiras e pressionar por novos acordos de comércio e investimento para acessar e extrair recursos naturais essenciais para o desenvolvimento do capitalismo verde e digital. Nesse contexto, a agenda da UE é proteger os interesses das grandes corporações transnacionais europeias (TNCs) e, ao mesmo tempo, oferecer uma pseudo-regulamentação ineficaz de suas operações.

É aí que entra em cena a Diretiva da UE sobre Devida Diligência. Ela é apresentada como um instrumento para obrigar as empresas transnacionais europeias a cumprir os direitos humanos em suas atividades em todo o mundo por meio da autorregulamentação. Depois de quatro anos de tramitação, a Diretiva foi finalmente aprovada em 24 de abril de 2024 pelo Parlamento Europeu e apresenta mais problemas do que soluções para as questões que alega abordar.

A devida diligência é um sofisma jurídico desprovido de conteúdo efetivo

Para a Campanha Global para Recuperar a Soberania dos Povos, Desmantelar o Poder Corporativo e Acabar com a Impunidade, o texto da Diretiva da UE, com sua estrutura jurídica construída em torno da noção de devida diligência, é problemático em muitos aspectos. Embora possa parecer um passo na direção certa para a proteção dos direitos humanos e a responsabilidade corporativa, acreditamos que a Diretiva seja profundamente enganosa. Ela impede um progresso decisivo no sentido de estabelecer mecanismos eficazes para acabar com a impunidade das TNCs e fornecer acesso efetivo à justiça e reparações para as pessoas afetadas ao longo das cadeias globais de valor controladas pelas TNCs e das quais elas são as principais beneficiárias. Trata-se de uma diretriz branda e inofensiva, baseada na autorregulação corporativa, que historicamente comprovou beneficiar as TNCs às custas dos povos e do planeta.

A Diretiva de Devida Diligência é apresentada como um padrão vinculativo, alegando obrigar as empresas a adotarem planos de prevenção nos quais identificam riscos e desenvolvem medidas para evitar que violações de direitos humanos e danos ambientais sejam cometidos em suas cadeias de valor. Entretanto, a Diretiva deixa uma grande liberdade para as empresas definirem o conteúdo desses planos, dificultando sua eficácia. Da mesma forma, as próprias empresas (ou os auditores que elas subcontratam) farão, no final, as avaliações periódicas de seus planos de ação. Dessa forma, a Diretiva ecoa o paradigma da autorregulação que tem dominado a agenda regulatória das empresas e dos direitos humanos por pelo menos 15 anos.

Além disso, as sanções e a responsabilidade civil por violações somente serão aplicadas quando os impactos socioambientais forem comprovados na ausência ou falha dos planos de prevenção. Além disso, se não for possível comprovar que as violações foram causadas por falhas no conteúdo e/ou na implementação dos planos, a empresa não poderá ser responsabilizada pelos danos ocorridos. E quanto ao fato de pessoas físicas (gerentes) ou jurídicas (empresas) poderem ser responsabilizadas criminalmente por violações de direitos humanos, a Diretiva simplesmente não faz menção. Isso é agravado pelo problema do ônus da prova, que coloca a responsabilidade de fornecer provas das violações inteiramente sobre as pessoas afetadas e as organizações ou sindicatos que possam trabalhar com elas.

Outra lacuna fundamental da Diretiva é que ela não garante a transparência e os direitos de acesso às informações relacionadas aos impactos socioambientais das transnacionais, limitando o acesso a essas informações a auditores privados nomeados e responsáveis pela própria empresa. Isso implica um risco significativo de que essas autoridades deem o aval para os planos de negócios e de prevenção sem consultar as pessoas afetadas ou realizar uma investigação em campo nas jurisdições onde as operações das TNCs ocorrem. Isso poderia dificultar ainda mais a comprovação de que as TNCs não cumpriram seus planos, garantindo assim a impunidade corporativa ao não assegurar o acesso real à justiça.

A devida diligência busca ser o teto normativo, impedindo o avanço de abordagens normativas baseadas em direitos humanos

Estamos diante de uma mudança discursiva que consiste em posicionar a devida diligência como uma estrutura obrigatória que seria o horizonte normativo que todos os países deveriam seguir, desencorajando assim outras estruturas regulatórias realmente eficazes.

Nesse contexto, a devida diligência pode enfraquecer outros padrões que estão sendo negociados atualmente em outros fóruns. O efeito é que, em vez de exigir que as TNCs cumpram as leis internacionais de direitos humanos, elas serão obrigadas apenas a instituir mecanismos de prevenção baseados na devida diligência. Na verdade, estão sendo desenvolvidas regulamentações e políticas em nível europeu que reduzem ainda mais as medidas de controle ambiental, social e fiscal para as TNCs.

Sejamos claros: os planos de risco baseados em prevenção são perfeitamente legítimos. No entanto, eles não podem ser a única ferramenta de controle das operações corporativas. As medidas de devida diligência seriam aceitáveis se fossem inseridas em uma lei de estrutura que incluísse outros elementos adicionais, tais como: Obrigações diretas para as TNCs e as instituições financeiras que as apoiam, separadas e independentes das obrigações já impostas aos Estados; mecanismos de responsabilidade solidária ao longo das cadeias de valor e produção; sanções claras e um regime de responsabilidade legal administrativa, civil e criminal no caso de violações de direitos humanos; primazia dos direitos humanos sobre os acordos e regras de comércio e investimento; mecanismos para garantir o acesso efetivo a recursos e à justiça (veja a proposta da Campanha Global por um Tribunal Internacional).

Outro tipo de regulamentação é possível

A regulamentação baseada no princípio da devida diligência está muito longe do que temos exigido nas últimas duas décadas como Campanha Global. Ela ignora ativamente as demandas da maioria dos movimentos e plataformas sociais que defendem o controle público rigoroso das TNCs como uma medida indispensável para enfrentar a policrise que enfrentamos. Há dez anos, um importante espaço de luta começou com a adoção da Resolução 26/9 pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, que deu impulso ao processo de elaboração de um instrumento juridicamente vinculante sobre empresas transnacionais e direitos humanos, na forma de um Tratado Vinculante. O instrumento tem como objetivo promover normas que sejam não apenas obrigatórias, mas, acima de tudo, eficazes no enfrentamento da impunidade corporativa.

Além do trabalho de defesa para avançar na elaboração do Tratado Vinculante, a Campanha Global também promove estruturas nacionais de responsabilidade legal e regulatória para combater a impunidade corporativa.

Já vimos que quando os lucros das empresas, o fornecimento de energia ou as necessidades de liquidez dos bancos estão em jogo, os Estados estão mais do que dispostos a mudar as regras para resolver a situação. Para o direito de protestar, os Estados não hesitam em reformar os códigos penais e promulgar leis de segurança do cidadão; para o direito de lucrar, no entanto, são promovidos códigos de conduta, programas de “responsabilidade social” e padrões de devida diligência. Não se trata de uma questão de técnica jurídica: se os direitos humanos não são colocados à frente dos direitos do poder corporativo, é porque falta vontade política ou ela é ativamente influenciada pelas corporações que têm interesse em lucrar. Os subterfúgios legais, como a devida diligência, aliados às injustiças acumuladas desde o colonialismo até os dias atuais, subjugam os povos e a maioria dos países do Sul Global aos ditames das elites do poder corporativo do Norte Global e de seus aliados políticos. Os vários retrocessos ocorridos durante a negociação da Diretiva da UE demonstram, mais uma vez, que os líderes europeus estão mais preocupados em ouvir e atender aos lobbies da TNC do que em cumprir seu dever de defender o interesse geral e proteger os direitos dos povos e do planeta.

Concluindo, acreditamos que qualquer estrutura regulatória para TNCs deve ser orientada, política e tecnicamente, por uma abordagem baseada em direitos humanos. Isso requer uma estrutura de responsabilidade legal que seja independente da devida diligência. Nessa estrutura, a prevenção não pode ser reduzida a uma mera formalidade e deve incluir obrigações de resultados (não violar os direitos humanos) e não de meios (desenvolver um plano de risco). Em outras palavras, e como já repetimos muitas vezes, a devida diligência não pode isentar as TNCs da responsabilidade legal por violações de direitos humanos. A devida diligência não é uma ferramenta que esteja realmente a serviço das comunidades afetadas, mas um entre outros instrumentos estéreis existentes, fundamentados nas estratégias evasivas de entidades poderosas.

A Campanha Global continuará a luta por um instrumento vinculativo forte e eficaz sobre empresas transnacionais e direitos humanos, e pela adoção de estruturas nacionais que promovam respostas eficazes à impunidade corporativa, na luta contínua pela soberania popular.

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