Alguns apontamentos sobre a revisão das políticas de salvaguardas do Banco Mundial

Paola Angelucci, pesquisadora associada do Homa e mestranda da Faculdade de Direito da UFJF, traz breve reflexão sobre o posicionamento da sociedade civil acerca do processo de revisão das salvaguardas socioambientais do Banco Mundial

 

Alguns apontamentos sobre a revisão das políticas de salvaguardas do Banco Mundial

 

Paola Angelucci

 

Buscando uma inserção mais adequada no cenário global, em que se observa um maior monitoramento por parte da sociedade civil das atividades realizadas e dos impactos causados pelos grandes empreendimentos, o Banco Mundial apresentou, em agosto de 2014 (e como resultado de um processo de três fases, iniciado em 2012 e com fim previsto para abril de 2015), uma proposta de revisão e atualização de suas políticas de salvaguardas.

O documento, disponível no próprio site do Banco[1], pretende afetar o comportamento de investidores e governantes ao redor do mundo, com base em uma revisão focada nas seguintes áreas: impactos sociais e ambientais; reassentamento involuntário; mudança climática; direitos das crianças; florestas e habitat natural; incapacidade física; questões de gênero; questões trabalhistas. A intenção é que este processo de elaboração das novas normas conte com a participação de toda a sociedade civil.

As salvaguardas surgiram justamente para prevenir o dano a comunidades negativamente afetadas pelo desenvolvimento de projetos ligados ao Banco Mundial. Como informado no site do Banco, 187 governos integram a instituição e as salvaguardas originais foram criadas através da pressão da sociedade civil organizada: desde os anos 80 e 90, projetos controversos – como o “Narmada Dam”, na Índia, que deslocou mais de 300.000 pessoas – fizeram com que as salvaguardas passassem a ser utilizadas para mitigar os riscos dos empreendimentos.

Um ponto importante a ser mencionado é que as salvaguardas preveem que, diante de sua violação, uma pessoa ou comunidade pode recorrer a uma parte independente do Banco Mundial, o Painel de Inspeção. Este Painel conduz uma investigação para determinar se houve ou não violação das salvaguardas previstas.

Outro aspecto relevante diz respeito ao fato de que o Banco Mundial foi pioneiro na elaboração deste tipo de diretriz de conduta. A partir dele, outros bancos em desenvolvimento e até mesmo outros tipos de instituição começaram a criar normas semelhantes visando este padrão internacional estabelecido.

Neste momento, a revisão das salvaguardas está em sua segunda fase, nomeada “Revisão do Primeiro Projeto.” O primeiro projeto com as salvaguardas atualizadas foi aprovado para consulta em 30 de julho de 2014 e oferece uma estrutura em três camadas que pretende tratar das questões sócio-ambientais de forma conjunta.

Todavia, a proposta foi recebida de modo controverso pelas organizações da sociedade civil, países mutuários e governos doadores. Um dos pontos mais negativamente comentados é a mudança na responsabilidade pela conformidade com as salvaguardas para os mutuários – antes, a responsabilidade era do Banco. Preocupações parecidas foram colocadas acerca da ausência de clareza quanto à responsabilidade e prestação de contas do Banco para garantir que salvaguardas sejam implementadas ao longo de um projeto.

Em notícia[2] recentemente divulgada pelo Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), é possível conferir esta insatisfação por parte das organizações da sociedade civil. Como informa o texto, a avaliação expressa na “Declaração da sociedade civil sobre as salvaguardas do Banco Mundial” repudia as novas normas do Banco Mundial. O documento possuía, até o momento da divulgação da notícia, a adesão de 306 organizações (entre elas, o Ibase) e considera as salvaguardas do Banco aquém das práticas necessárias para a preservação do meio ambiente e da garantia dos direitos das comunidades afetadas por grandes empreendimentos.

A Declaração alega, ainda, que o processo de revisão iniciado pelo Banco foi falho a partir do momento em que deixou de incluir contribuições das organizações da sociedade civil, peritos independentes e acadêmicos, indígenas, sindicatos e comunidades afetadas pelo projeto. Afirma-se que, durante a primeira fase de elaboração das mudanças, foi inexistente qualquer oportunidade de discussão válida.

Uma crítica específica diz respeito aos direitos dos povos indígenas. As novas salvaguardas do Banco Mundial permitiriam que os mutuários optassem pela não implementação das normas referentes a estes povos, contrariando seus direitos à auto-determinação e à propriedade coletiva das terras, territórios e recursos.

Outro ponto criticado diz respeito aos direitos dos trabalhadores: a norma proposta neste assunto teria impacto quase nulo, uma vez que, ao excluir terceirizados e funcionários públicos, seria aplicada a apenas uma parcela mínima dos funcionários do Banco. Ademais, haveria uma ausência de referência ou mesmo um desacordo com as convenções da OIT e das Normas Trabalhistas Fundamentais.

A Declaração menciona também uma grande falha na proteção aos direitos humanos, considerando que a proposta do Banco não demonstra como irá operacionalizar os compromissos assumidos neste sentido, ou seja, como irá identificar os riscos das atividades, como irá realizar as devidas diligências e alcançar as metas propostas para a proteção dos direitos humanos.

Da mesma forma, também não há um enfrentamento significativo do problema da mudança climática. Não há requisitos explícitos para a avaliação e gestão dos impactos de mudanças climáticas causadas pelos projetos e nem para a verificação da resiliência dos ecossistemas e comunidades inseridas no local.

Quanto aos deslocamentos forçados, a Declaração acusa a nova proposta do Banco de eliminar as principais medidas essenciais para prevenir a pobreza e proteger os direitos dessas pessoas. Isto porque permite o financiamento de projetos que implicam no deslocamento físico e econômico das comunidades sem lançar mão, de modo prévio, de um plano de reconstrução e orçamento que vise uma compensação adequada.

Por fim, a Declaração menciona ainda outros aspectos da proposta, englobando praticamente todas as áreas contempladas: critica a falta de proteção adequada para evitar privações na infância; critica a norma da biodiversidade, por focar somente na biodiversidade das espécies em detrimento da integridade ecológica e das comunidades locais que dependem dos recursos naturais; critica a ausência de avaliação específica dos impactos dos projetos sobre as pessoas portadoras de deficiências; critica a ausência de proteções a gênero e dos direitos a terra.

Em suma, a Declaração acusa o Banco de uma tentativa de institucionalização de maiores brechas e abdicação de responsabilidade, ao mesmo tempo em que cria uma terceirização do monitoramento e da implementação de salvaguardas para os mutuários.

Como divulgado pelo Conectas[3] – por meio de seu advogado do projeto de Empresas e Direitos Humanos, Caio Borges – a decisão do Banco Mundial de reduzir sua rede de proteção aos direitos humanos reflete um cenário de crescente concorrência entre fontes de financiamento. O relaxamento das salvaguardas, segundo o advogado, ocorre por conta da pressão por uma maior quantidade de empréstimos e pela manutenção de um papel de relevância em um momento em que bancos regionais e nacionais – como o BNDES – se fortalecem.

Todavia, a gravidade da situação é acentuada, segundo especialistas, pelo fato de que a conduta do Banco Mundial certamente irá influenciar negativamente os parâmetros de proteção social cultivados por outras instituições financeiras que se utilizam do Banco como padrão.

O grupo “Bank on Human Rights”[4], formado por diversas organizações voltadas para a proteção dos direitos humanos, enviou uma carta[5] ao Banco Mundial repudiando as novas medidas. Na carta, a organização afirma que a aprovação da proposta atual de salvaguardas, da forma como foi apresentada, significaria um abandono, por parte do Banco e de seus membros, da obrigação anteriormente assumida de cuidar para que dos investimentos não resultem violações aos direitos humanos. Isto porque o próprio texto vago adotado permitiria brechas neste sentido e retiraria o significado de qualquer proteção já alcançada. Além disso, o grupo ressalta que esta conduta do Banco persiste apesar dos insistentes pedidos, por parte das organizações da sociedade civil e dos próprios governos, para que as salvaguardas sejam fortalecidas e os parâmetros de direitos humanos internacionalmente estabelecidos, respeitados. Por fim, a organização rejeita explicitamente a proposta e pede sua revisão para posterior consulta.

Deve-se ainda avaliar a postura do Banco Mundial frente à criação de novas instituições financeiras multilaterais, como é o caso do Novo Banco de Desenvolvimento dos Brics – como ressalta Juana Kweitel, diretora de Programas da Conectas.

 O Banco dos Brics surge da necessidade de investimentos nas áreas de infraestrutura e desenvolvimento em países emergentes, possibilitando uma nova via de financiamento, além das já existentes por meio de instituições como o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID)[6]. Desta forma, aqui também é cabível a avaliação dos parâmetros de proteção aos direitos humanos que serão adotados para reger a concessão de financiamento pelo Banco dos Brics. Ou seja, também esta nova instituição pode ser negativamente afetada pelo relaxamento das salvaguardas apontado pelo Banco Mundial.

Sendo assim, como destacado pelo Conectas[7], após a VI Cúpula dos BRICS, o primeiro projeto do grupo não pode deixar de incluir os seguintes pontos: 1) diretrizes e políticas socioambientais e de respeito aos direitos humanos; 2) consulta livre, prévia e informada antes de projetos com impacto sobre a vida de povos indígenas e tribais; 3) políticas sólidas de transparência e acesso à informação; 4) mecanismo efetivo e transparente para reclamações e solução de conflitos; 5) participação da sociedade em todas as fases de formalização do banco e no ciclo dos projetos.

O Conectas, em conjunto com outras oito entidades, enviou uma carta[8] no período de julho de 2014 cobrando o cumprimento dos cinco pontos mínimos acima mencionados e demonstrando sua preocupação com a mera reprodução do padrão de violação de direitos humanos observado em outras instituições financeiras internacionais.

Todavia, em encontro informal recente[9] em que uma das grandes pautas foi a criação do Banco dos BRICS, os líderes do bloco não mencionaram nenhum dos aspectos relativos à proteção dos direitos humanos. Trataram de medidas para promover o crescimento e a criação de empregos; investimento e infraestrutura; comércio; fortalecimento do sistema financeiro e cooperação em matéria tributária; além de questões energéticas. Ainda não forneceram, portanto, indicativos de como o Banco dos BRICS irá incorporar os critérios de proteção aos direitos humanos diante dos grandes investimentos e projetos que irá financiar.

 

 

 


[1] http://www.bicusa.org/issues/safeguards/

[2] http://www.ibase.br/pt/2014/11/novas-normas-do-banco-mundial/

[3] http://conectas.org/pt/acoes/empresas-e-direitos-humanos/noticia/25264-mau-exemplo

[4] http://bankonhumanrights.org/about/

[5] http://conectas.org/arquivos/editor/files/Human-Rights-Issues-Statement-7_28_14%20(1).pdf

[6] http://conectas.org/pt/acoes/empresas-e-direitos-humanos/noticia/6478-banco-dos-brics-uma-alternativa-viavel-porem-sustentavel

[7] http://conectas.org/pt/acoes/politica-externa/noticia/24201-vi-cupula-dos-brics

[8] http://conectas.org/arquivos/editor/files/Carta%20Novo%20Banco%20Desenvolvimento%20BRICS%20-%205%20Pontos%2014%2007%20(4).pdf

[9] http://www2.planalto.gov.br/acompanhe-o-planalto/notas-oficiais/notas-oficiais/nota-a-imprensa-do-encontro-informal-dos-lideres-do-brics-por-ocasiao-da-cupula-do-g20-em-brisbane

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