O histórico da Agenda Global de Direitos Humanos e Empresas na ONU
A Agenda Global de Direitos Humanos e Empresas
Texto por: Renata Guarino
Como já vimos, o Direito Internacional regula a interação entre Estados. A partir da primeira metade do século XX, as Empresas transnacionais começam a se tornar entidades mais fortes que os Estados, trazendo a necessidade de criar uma regulamentação para corporações multinacionais. Em dezembro de 1972, Salvador Allende, presidente do Chile neste período, faz um discurso na ONU denunciando os abusos cometidos por empresas transnacionais em seu país.
O poder das Empresas Transnacionais
Para compreendermos a importância desse debate que começa a ser travado no âmbito global é importante entendermos o poder das transnacionais. Para conseguirmos visualizar o tamanho dessas Empresas Transnacionais, podemos comparar o valor de mercado de algumas corporações com o valor do PIB brasileiro. Segundo o jornal A Gazeta, a gigante da área de tecnologia, Apple, chegou a R$10 trilhões em agosto de 2020. Enquanto isso, o PIB brasileiro em 2019 alcançou R$7,3 trilhões, ou seja, menor do que o valor da empresa norte-americana. A Apple não é a única: Amazon e Microsoft, ambas com R$8,3 trilhões, também possuem o valor de mercado maior que o PIB brasileiro. (veja sobre o poder de empresas transnacionais aqui).
São frequentes as situações nas quais empresas multinacionais violam os Direitos Humanos e não são responsabilizadas pelos seus atos. Grande parte das violações é resultado da falta de regulamentação dos Estados em relação a essas empresas, porém também há falhas no sistema internacional que refletem nas violações de Direitos Humanos causadas por empresas. O Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos possuem diretrizes voluntárias, mas não vinculantes e muitas empresas só agem de acordo com os princípios quando há uma legislação em vigor que as obriga a cumpri-los. Falaremos mais sobre os Princípios Orientadores em breve.
Vejamos abaixo alguns casos famosos de violações aos Direitos Humanos por Empresas que ajudaram a impulsionar essa agenda:
Caso Rana Plaza
Em abril de 2013, um prédio de três andares, conhecido como Rana Plaza, desabou em Bangladesh e matou pelo menos 1134 pessoas e deixou cerca de 2500 feridos. No local funcionava uma fábrica de tecidos com amplo descumprimento das normas básicas de segurança. O caso é conhecido como o mais letal da história moderna.
A fábrica produzia tecidos para as principais marcas internacionais de roupas, sendo a loja britânica Primark sua principal cliente. A maior parte da produção de roupas para grandes marcas é feita em Bangladesh. O país é conhecido por sua mão de obra barata e falhas no cumprimento dos Direitos Humanos. No caso do edifício Rana Plaza, as empresas com produtos fabricados no local formaram um fundo voluntário para indenização dos trabalhadores, porém algumas corporações se recusaram a assinar o acordo de indenização, como a Carrefour e a JCPenney. Veja a matéria completa sobre o assunto na BBC e no Portal Público .
Caso Chevron
A empresa petroleira norte-americana Chevron foi acusada de despejar 68 bilhões de litros de água tóxica e 64 milhões de litros de óleo cru no nordeste do Equador. A ação afetou cerca de 30 mil pessoas e causou danos ao meio ambiente. Foram estimadas 1500 mortes decorrentes de contaminação causada pelo lixo tóxico.
Em 2012, a empresa foi condenada a pagar US$9,5 milhões de indenização aos prejudicados, mas até hoje se recusa a cumprir a ordem judicial. Para evitar o cumprimento, a Chevron retirou todos os seus bens do Equador. Essa ação fez com que os afetados precisassem recorrer a tribunais estrangeiros em busca da execução da sentença. Até hoje não obtiveram sucesso. Veja mais sobre o caso no site da Terra de Direitos e da Fase.
Caso Bhopal
Considerado o maior crime industrial da história, ocorreu em 3 de dezembro de 1984. O vazamento de 40 toneladas de gás tóxico em Bhopal, na Índia, matou mais de 2,2 mil pessoas imediatamente com a inalação do gás, e foram registradas mais de 25 mil mortes relacionadas ao vazamento. A estatística do governo indiano diz que mais de 558 mil afetados até o ano de 2006. A responsável pelo ocorrido foi a empresa norte-americana Union Caribe, que produzia agrotóxicos na fábrica de Bhopal.
Em acordo com o governo indiano fora dos tribunais, a empresa multinacional conseguiu pagar apenas 470 milhões de dólares, o equivalente a menos de 100 dólares por afetado e 14% do valor proposto. Conheça mais sobre o caso nas matéria do Brasil de Fato e da Anistia Internacional.
O histórico da Agenda Global na ONU
Tendo em visto toda a realidade demonstrada na Assembleia Geral da ONU pelo ex-presidente chileno, surge a Agenda Global, com o objetivo de estudar os mecanismos de violação dos direitos humanos de grandes corporações e criar meios para um acordo internacional em busca de impedir que isso aconteça. O seu processo histórico pode ser dividido em três partes, segundo os professores Surya Deva e David Bilchitz.
A primeira fase começa em 1972 após o discurso do Salvador Allende, com a criação da Comissão de Empresas Transnacionais submetida ao Conselho Econômico e Social da ONU. Nesse período ocorre a criação do Código de Conduta, um documento que apresentava diretrizes para Empresas Transnacionais. Seu foco era a relação entre empresas e os Estados, não os Direitos Humanos. A época estava marcada pela disputa dos Estados do Atlântico e Pacífico Norte, onde se concentravam a maior parte das sedes administrativas das grandes corporações, e os Estados em desenvolvimento, hospedeiros das empresas transnacionais. O texto proposto do Código de Conduta em 1990 não conseguiu se sustentar, sendo abandonado em 1992.
A segunda fase tem início entre 1997 e 1998, quando se estabelece um grupo de trabalho na Subcomissão para Promoção e Proteção dos Direitos Humanos, subordinada ao Conselho de Direitos Humanos da ONU, graças a pressões por parte de organizações não governamentais e movimentos sociais. Esse grupo tinha por objetivo analisar a atividade de empresas em relação aos Direitos Humanos, estudando legislações e códigos empresariais, junto a consultas às empresas, sindicatos e organizações não governamentais, levando a criação, em 2003, das “Normas sobre Responsabilidades das Corporações Transnacionais e Outros Empreendimentos Privados com Relação aos Direitos Humanos”, também conhecidas como “Normas”. As Draft Norms advinham da constatação da insuficiência de estabelecer normas voluntárias para regular as atividades das empresas. Como resultado, as Draft Norms, aprovadas na Subcomissão, tinham um caráter vinculante, inovando ao estabelecer obrigações diretas às Empresas Transnacionais e a aplicação delas pelos tribunais de justiça dos países. No entanto, por forte pressão das empresas, que afirmavam que as obrigações de Direitos Humanos seriam exclusivas dos Estados, as Normas foram rejeitadas em 2004 pela Comissão de Direitos Humanos da ONU.
Paralelamente a isso, com a posse de Kofi Annan no cargo de Secretário-Geral em 1997, houve uma aproximação da atuação da ONU aos ideias empresariais, conforme Zubizarreta e Ramiro (2016). Tal aproximação resultou na criação, junto ao Fórum Econômico Mundial de Davos, do Pacto Global, um conjunto de nove princípios genéricos sobre Direitos Humanos e atividades empresariais de adesão voluntária das empresas. Sua criação consolidou o marco da Responsabilidade Social Corporativa, profundamente marcado pelo caráter voluntarista.
A terceira fase começa em 2005 quando John Ruggie assume o cargo de Representante Especial do Secretário Geral para a temática Direitos Humanos e Empresas Transnacionais, após a rejeição das “Normas” pela Comissão de Direitos Humanos da ONU. O mandato de Ruggie caracteriza-se pela continuidade no debate entre voluntariedade e obrigatoriedade das empresas em relação aos princípios de Direitos Humanos, mas sob a prevalência da lógica regulatória voluntarista. Em 2011 foram lançados, sob o mandato de Ruggie, os Princípios Orientadores em Empresas e Direitos Humanos da ONU, também chamados Princípios Ruggie. No próximo post falaremos mais sobre eles.
Para maiores informações sobre esse processo histórico leia os nossos documentos:
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[…] Como já vimos, as empresas transnacionais estão gradualmente ocupando um lugar que antes era ocupado apenas pelos Estados nas negociações relacionadas ao Direito Internacional. Elas se utilizam do lobby e se impõem sobre a vontade da sociedade civil, tendo mais força política perante ao Estado. […]
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