Protocolos de Consulta
Texto por: Beatriz Braga
Como pontuado nas publicações anteriores da Série sobre Povos Indígenas e Direitos Humanos e Empresas, um dos pilares da Convenção nº 169 da OIT é a consulta prévia, livre e informada (CPLI), intimamente ligada ao direito à autodeterminação e ao livre desenvolvimento dos povos indígenas e tribais. Nesse sentido, o presente texto tem como enfoque tratar sobre os Protocolos de Consulta, consequência direta do direito a CPLI, cujo objetivo é assegurar o caráter emancipatório desse direito.
O que são os Protocolos de Consulta?
É instituído no art. 6º da Convenção nº 169 que os governos deverão “consultar os povos interessados, mediante procedimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-Ios diretamente;” bem como “estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os níveis (…)”.
Nesse sentido, é um dever do Estado consultar os Povos Indígenas e Tribais sempre que um ato administrativo afete os direitos desses povos. Contudo, apesar de ser uma obrigação dos Estados signatários da Convenção, eles nem sempre cumprem com este dever ou, em alguns casos, o fazem com tal formalismo que torna uma ferramenta meramente burocrática e indiferente ao seu verdadeiro propósito.
Além disso, outro problema é como realizar, na prática, a consulta. O Brasil, por exemplo, possui mais de 300 etnias, além de milhares de comunidades quilombolas e tradicionais que também são sujeitos desse mesmo direito, e cada uma com processo próprio de tomada de decisão. ( Felício Pontes Jr.)
Então, de forma a sanar esses impasses e evitar violações a esse direito, os povos indígenas, quilombolas e outros elaboram seus próprios instrumentos legítimos de Consulta: os Protocolos autônomos. No Estado brasileiro, o Povo Wajãpi foi o primeiro a tomar a iniciativa, em 2014, sendo seguido pelo Protocolo do Povo Munduruku; outros povos na América Latina também registravam, na mesma época, suas experiências com os protocolos autônomos.
Como são feitos os Protocolos?
O primeiro movimento dos Estados Nacionais para possibilitar a consulta prévia foi a criação de leis gerais para guiar a realização dos protocolos. Apesar de ser uma atitude esperada, conforme a lógica do Direito Moderno, não serve ao verdadeiro propósito, visto que, considerando a multiplicidade dos povos Indígenas e Tribais, seus diferentes costumes e necessidades, a via escolhida a priori de livre e informada não teria nada.
O que os Povos Tradicionais perceberam foi que os protocolos não poderiam ter natureza de atos bilaterais, isso porque a consulta à comunidade não é um acordo de duas partes, de dois direitos, o que está em jogo é o direito de uma parte e a obrigação da outra (Carlos Marés). Dessa forma, a solução encontrada por eles foi criar normas internas que estabeleçam as formas como devem ser feitos os processos de consulta, que deverão ser seguidos pelo Estado.
Portanto, a via que se entende hoje ser a mais eficaz é a que, antes de realizar a consulta, cada povo deverá decidir internamente como deseja que efetivamente se dê essa consulta. O âmbito de sua aplicação deve ser determinado casuisticamente, ou seja, levando em consideração cada caso concreto.
Uma etapa essencial nesse processo é a ‘pré-consulta’, onde se apresenta o projeto para o povo que será afetado com a sua execução. Na etapa seguinte, a dos estudos de impacto, a participação das comunidades tradicionais é indispensável, afinal, são as maiores conhecedoras dos territórios, além de serem as únicas que podem apontar o significado especial de determinada localidade para sua cultura e etc. Estes estudos devem ser apresentados aos povos de forma que eles possam iniciar o diálogo intercultural.
No livro ‘Protocolos de consulta prévia e o direito à livre determinação’ elaborado por pesquisadores do Observatório de Protocolos Comunitários de Consulta e Consentimento Livre Prévio e Informado, no qual o presente texto se baseia, organiza o processo de consulta livre, prévia e informada em seis etapas:
- Etapa de pré-consulta ou plano de consulta
- Etapa informativa de abertura
- Realização do Estudo de Impacto Ambiental e Social (EIA)
- Etapa de internalização e socialização
- Etapa deliberativa/Protocolização
- Etapa de seguimento.
Na etapa deliberativa, no caso de não haver o consentimento do povo tradicional envolvido na demanda, o Estado poderá apresentar um projeto alternativo e, então, iniciar um novo processo de consulta.
Se a proposta for aprovada, na etapa de seguimento deverá se acompanhar se as condições acordadas para a realização do projeto estão sendo respeitadas e, em caso contrário, o projeto deve ser suspenso.
Um grande exemplo desse processo foi o ‘Protocolo de Consulta da nação Munduruku’:
O governo Federal pretendia construir no rio Tapajós a Usina Hidrelétrica São Luiz do Tapajós sem garantir o direito a consulta prévia, livre e informada aos Munduruku e outros povos tradicionais que seriam diretamente afetados pelo projeto. Após disputa judicial em ação movida pelo Ministério Público Federal (MPF), o STF decidiu que o governo não poderia avançar com o projeto sem realizar o protocolo de consulta.
As reuniões convocadas então pelo governo entre 2011 e 2014 não contaram com a efetiva participação das comunidades. Se recusando a aderir a um procedimento que não passava de uma mera formalidade, os Mundurukus suspenderam a reunião e promoveram oficinas e discussões internas para se organizar antes de voltar a negociar com o governo.
Ao longo das oficinas os debates foram norteados em torno de três perguntas: ‘quem decide pelo povo Munduruku?’ ‘Quem participa das discussões e decisões?’ ‘Como o povo Munduruku decide?’ As respostas foram transcritas e foi elaborado o primeiro esboço do Protocolo de Consulta Munduruku.
Em abril de 2015, lideranças indígenas foram a Brasília entregar o Protocolo de Consulta e em 2016 o processo de licenciamento ambiental da Usina Hidrelétrica de São Luiz do Tapajós foi arquivado por ser socioambientalmente inviável e por implicar na remoção compulsória dos Munduruku.
Foi a partir de sua própria iniciativa, se colocando como protagonistas nesse debate, que o povo Munduruku conseguiu que o processo de consulta fosse um instrumento verdadeiramente eficiente na proteção de seus direitos.
Sobre os protocolos de consulta, como observou Davi Kopenawa, xamã yanomami:
“Esta é nossa arma, nosso instrumento, para nos defender, o Protocolo de Consulta. Para conversar com o branco. E é pela escrita, para homem da cidade entender”.
Referência:
C. Marés; L. Lima; R. Oliveira; C. Motoki. Protocolos de consulta prévia e o direito à livre determinação. Verena Glass (org.). – São Paulo: Fundação Rosa Luxemburgo; CEPEDIS, 2019.
Convenção n° 169 da OIT sobre Povos Indígenas e Tribais. 27 de junho de 1989.
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