A noção de Direitos Humanos na Agenda de DH e Empresas: teoria tradicional e teoria crítica

Começamos mais uma série de publicações sobre Direitos Humanos e Empresas. O objetivo dessa série é trazer os principais pontos, questões e polêmicas atinentes a consolidação de uma agenda, tanto nacional quanto internacional, de Empresas e Direitos Humanos – ou Direitos Humanos e Empresas, como preferimos chamar. Não buscamos, no entanto, fazer um aprofundamento sobre toda teoria conceitual dos Direitos Humanos e do Direito Internacional.

Primeiramente, precisamos apresentar quais são as questões mais angustiantes diante da possibilidade de tornarmos mais eficazes os mecanismos de responsabilização atuais, especialmente os de empresas por violações de Direitos Humanos. Nós sabemos que já há todo um arcabouço jurídico consolidado com relação à responsabilidade dos Estados, tanto no plano nacional quanto no internacional. Porém, com relação às responsabilidades das empresas observamos que ainda existem algumas lacunas e dificuldades em relação à prevenção de violações de Direitos Humanos pelas empresas, assim como em relação à possível reparação dessas violações quando cometidas por esses atores.

Aqui é importante estabelecermos um questionamento relacionado ao próprio termo “violação”. Há muitos estudiosos que acreditam ser inapropriado atribuirmos o termo violação de Direitos Humanos à atividade empresarial. Para eles, seria mais correto falarmos em riscos, impactos ou abusos concernentes à atuação corporativa, e não propriamente o termo “violação”. Para entendermos mais sobre as questões em debate no tema, vamos esclarecer o próprio conceito de Direitos Humanos, o papel do Estado enquanto violador e também da empresa potencialmente violadora, ou provocadora de riscos e abusos em relação aos direitos humanos.

Teoria Tradicional e Teoria Crítica de Direitos Humanos

Um pesquisador conhecido que poderíamos incluir no rol de doutrinadores tradicionais é o professor Antônio Augusto Cançado Trindade. Ele atribui aos Direitos Humanos o conceito de novo ethos civilizatório. Dessa forma, teríamos na teoria tradicional uma concepção neokantiana, que concebe os Direitos Humanos como aquilo que protege a dignidade humana e que é inerente a qualquer ser humano em razão de sua própria condição humana

Por outro lado, na teoria crítica, nós temos doutrinadores como Costa Douzinas e Joaquim Herrera Flores, que relativizam e desqualificam essa concepção universal e abstrata de Direitos Humanos. Eles dizem que, para nós reconhecermos realmente a essência dos Direitos Humanos, seria importante trazer à tona a questão das lutas e da dinâmica de poder relacionada à validação, ao reconhecimento e à eficácia dos Direitos Humanos.

Assim, na concepção mais tradicional, há o reconhecimento do Estado como ator principal no que diz respeito ao provimento de garantias e à possíveis reparações. O reconhecimento do Estado como o principal ator dessa dinâmica é o suficiente. Já com a teoria crítica, nós temos a importância da sociedade civil ou das próprias comunidades atingidas*, buscando empoderar mais os atingidos e as atingidas em relação às violações de Direitos Humanos sofridas e na eficácia para prover garantias na proteção dos Direitos Humanos.

*Vítimas é uma denominação que não usamos em casos de violações de Direitos Humanos, por ser um termo ligado à ideia de incapacidade de atuação. Muitos movimentos sociais e organizações da sociedade civil preferem a denominação atingidos e atingidas, por carregar consigo a concepção de luta e ação na defesa dos seus direitos. 


No debate relacionado à Agenda Global (link), – de acordo com a Resolução nº 26/9 do Conselho de Direitos Humanos da ONU de 2014, com a qual se começa a negociar o tratado internacional sobre Direitos Humanos e Empresas – discute-se muito se os Direitos Humanos seriam os já estabelecidos em tratados internacionais ratificados pelos Estados. Por outro lado, nós poderíamos abrir um leque mais flexível de reconhecimento de outros direitos, como os identificados pelas populações atingidas no processo de violação de Direitos Humanos. Assim, é discutido o que deveria estar logo no preâmbulo do tratado, indicando a sua finalidade e o alcance sobre o que seriam os Direitos Humanos.

A tendência atual é de adotar vertente um pouco mais tradicional, na qual os Direitos Humanos seriam aqueles já presentes em tratados internacionais reconhecidos pelo Estado, cuja conformação está toda direcionada para o protagonismo dos Estados. Dessa forma, nós temos outro problema apontado no processo de negociação de um tratado sobre o tema. Há Estados que ratificaram um rol de direitos e outros não. 

Então, como chegar a um denominador comum? Deveria prevalecer a vontade dos Estados na atribuição do conteúdo de um futuro tratado internacional? Ou nós deveríamos abrir um espaço para o protagonismo de atingidos e atingidas, e então pensarmos em uma mudança paradigmática importante até no âmbito institucional do Conselho de Direitos Humanos hoje, estabelecendo um mecanismo institucional de validação desses direitos a partir das suas próprias demandas, advindas das lutas e dos enfrentamentos das violações nos próprios territórios? É um desafio complexo, difícil num marco institucional de um tratado internacional no âmbito das Nações Unidas, mas é a questão que está em evidência e discussão atualmente. 

Nós vamos falar, mais à frente, sobre todas as fases do processo de negociação e todas as fases de consolidação da agenda internacional sobre empresas e Direitos Humanos, chegando até a negociação do tratado internacional.

Características 

Os Direitos Humanos são passíveis de negociação? Os Direitos Humanos são efetivamente universais? Eles seriam indivisíveis? Eles seriam interdependentes

Uma questão importante que nós evidenciamos na prática, no processo de busca da regulamentação da atividade empresarial, é se elas podem negociar direitos com os próprios atingidos e atingidas ou com o Estado (que representa efetivamente os direitos desses atingidos e atingidas), quando é passível de violar ou de impactar as garantias de direitos dos indivíduos. Ou seja, a questão da negociabilidade (ou não) dos Direitos Humanos é muito importante, uma vez que tentaremos reconhecer todo um arcabouço conceitual sobre os Direitos Humanos. 

Há um espaço de negociabilidade? Seria possível considerar legítimos acordos ou processos de mediação que buscam engendrar o processo de reparação dos Direitos Humanos? Grande parte da sociedade civil, movimentos sociais, grupos que representam atingidos e atingidas por violações são contrários a possibilidade da negociabilidade, de se negociar os Direitos Humanos. 

Outra questão diz respeito à possibilidade do Estado e das empresas estarem num lugar de igualdade perante as atingidas ou atingidos, e vítimas das violações na busca dessa reparação. Quando buscamos um processo de reparação, será que a constituição desses mecanismos reparatórios poderia ser pensada conjuntamente no sistema chamado atualmente de multistakeholder**

Multistakeholder é um sistema de governança no qual os atores interessados buscam uma construção apaziguadora e pacificadora das partes.

Para muitos doutrinadores e para grupos mais próximos aos movimentos sociais e representantes de atingidos, esse sistema é problemático pois estaria menosprezando a grande desigualdade de poder que se estabelece na relação de atingidos e atingidas e as próprias empresas.

Alguns casos presentes na nossa realidade de grandes desastres em que as empresas fazem parte do próprio processo de reparação, ou seja, tem um espaço de composição no próprio conflito. Uma vez que elas são reconhecidas como violadoras de Direitos Humanos, isso não deveria ser possível. A dinâmica que se estabelece hoje no campo da discussão, e também na conformação dessa agenda, é uma mudança paradigmática importante sobre empresas serem consideradas violadoras.

Elas não estão só causando impactos, provocando riscos, ou abusando de direitos no desempenho da sua atividade econômica. Na verdade, elas estão violando direitos humanos, e a participação delas num processo de implementação do próprio empreendimento deveria ser diferente. Elas não poderiam participar como participam.

Nós temos o caso do desastre referente à Bacia do Rio Doce, em 2015, com o rompimento da Barragem do Fundão. Nesse episódio, uma fundação privada criada pelas empresas – no caso a Renova – participa da composição do conflito que está muito próximo ao território e tem protagonismo no processo de reparação dos danos (ou violações) cometidos pela Vale, a Samarco e a BHP. 

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