Princípios Orientadores das Nações Unidas Sobre Empresas e Direitos Humanos e o Papel da Sociedade Civil: Uma Breve Consideração

Homa divulga segundo texto, de uma série de três, como preparação para as discussões no III Fórum de Empresas e Direitos Humanos da ONU, no mês de dezembro, em Genebra:

PRINCÍPIOS ORIENTADORES DAS NAÇÕES UNIDAS SOBRE EMPRESAS E DIREITOS HUMANOS E O PAPEL DA SOCIEDADE CIVIL: UMA BREVE CONSIDERAÇÃO

Manoela Carneiro Roland (Coordenadora do Homa)

Luiz Carlos Faria Júnior (Pesquisador Associado do Homa e Mestrando da Faculdade de Direito da UFJF)

 

Com o processo de transnacionalização do capital que se iniciou no pós-segunda guerra mundial, as empresas transnacionais se tornaram portadoras de grande poder político e econômico, capazes de ditar os rumos de governos, e de construir agendas de organismos internacionais.

O modelo transnacional de empresa que ocupa papel de destaque neste processo de expansão e reprodução global do modo de produção capitalista tem como uma característica principal o padrão de conduta predatório, contrário aos modos alternativos de desenvolvimento e produção, se chocando diretamente com a lógica dos Direitos Humanos.

Nessa escalada crescente do papel e importância das empresas transnacionais no cenário internacional, estas se tornaram um dos principais agentes violadores de Direitos Humanos, entrando no “mapa de combate” da rede global de proteção e defesa dos Direitos Humanos, e da sociedade civil internacional.

A inclusão da pauta de discussão “Direitos Humanos e Empresas” nas deliberações da Organização das Nações Unidas nunca foi voluntária e sempre demandou grande pressão por parte da sociedade civil, desde a década de 1970 quando iniciou-se o processo para desenvolvimento de um Código de Conduta Internacional para regular as atividades das empresas em vários campos, dentre eles, o respeito aos Direitos Humanos.

Esta iniciativa surgida na década de 1970 não encontrou terreno fértil e não prosperou, tendo seu produto sido rejeitado em meio a debates entre “países desenvolvidos” e “países em desenvolvimento”.

Na década de 1990, com o fim da polarização mundial, a intensificação do processo de globalização neoliberal, e a aplicação de medidas de liberalização econômica para adoção do modelo transnacional de produção, as violações de Direitos Humanos por empresas aumentaram, atingindo localidades em todo o globo.

Tal agravamento das contradições no modelo neoliberal em relação aos Direitos Humanos levou a grande articulação internacional da sociedade civil para exigência de medidas eficazes de responsabilização destes atores na esfera internacional, e essa articulação permanece até o presente momento, revelando um campo de grandes contraposições e luta entre representações governamentais, corporativas e da sociedade civil.

Em 1997, atendendo a exigências da sociedade civil, a ONU determinou a nomeação de um grupo de especialistas para desenvolvimento de normativas e diretrizes internacionais a fim de regular a atividade empresarial em relação a Direitos Humanos. Deste trabalho, foram lançadas em 2003 as Normas sobre Responsabilidades em Direitos Humanos para Empresas Transnacionais e Outros Negócios, conhecidas como “Normas”, que, apesar de algumas críticas, foram bem aceitas pelas organizações não governamentais e movimentos sociais componentes da sociedade civil internacional.

No entanto, sofreram grande rejeição por parte do setor corporativo, e por alguns Estados do atlântico norte, por estabelecer responsabilidade subsidiária das empresas em relação aos Estados na proteção e promoção dos Direitos Humanos em sua esfera de influência, e se propor a ser uma normativa dotada de caráter vinculante, gerando, portanto, obrigações internacionais.

Assim, as “Normas” foram desacreditadas pelo Conselho de Direitos Humanos da ONU, após a sua criação em 2006, e sua possível obrigatoriedade negada, o que gerou respostas da sociedade civil diante da situação de retrocesso e  de provável remoção da temática da pauta de debates das Nações Unidas.

Paralelamente a esse processo, em 1999, o Secretário Geral da ONU, Kofi Annan, lançou, com a assessoria de vários especialistas, o Pacto Global, de adesão voluntária pelas empresas, que traçava nove princípios para atuação das empresas, relativos a Direitos Humanos.

O Pacto Global, pela sua grande adesão por parte das empresas, que enxergaram nele espaço de legitimação dos seus programas de Responsabilidade Social, foi um dos principais argumentos para o abandono das “Normas”.

Diante da movimentação internacional e da insatisfação da sociedade civil com as iniciativas voluntaristas, o Secretário Geral da ONU se viu pressionado a prosseguir com as discussões sobre o tema, nomeando um Representante Especial para Direitos Humanos, Empresas Transnacionais e Outros Negócios em 2005, o professor de Harvard e um dos idealizadores do Pacto Global, John Ruggie.

Os dois mandatos de Ruggie foram cercados de desconfiança por parte da sociedade civil, tendo em vista sua própria participação na elaboração do Pacto Global e seu alinhamento com o voluntarismo, que veio a se confirmar com a apresentação do Framework “Protect, Respect and Remedy” em 2008, e dos Princípios Orientadores em Direitos Humanos e Empresas em 2011, baseados no que Ruggie chama de “Pragmatismo Principiológico”, mas que Deva (2013)[1] identifica como um processo que coloca as empresas no “assento do motorista”.

Ou seja, o processo passou por um processo de “captura” por parte das empresas, beneficiadas pelos esforços de busca do “consenso” por John Ruggie na concepção das Guidelines. A necessidade deste “consenso” consistiu, em última instância, na adequação máxima dos Princípios às demandas empresariais, a fim de que não figurassem como uma ameaça substancial à atividade corporativa, permitindo a adesão das empresas aos mesmos. Desta forma, a responsabilidade empresarial por violações de Direitos Humanos não ficou objetivamente determinada, apenas a dos Estados, assim como se observou a utilização de um vocabulário adequado à lógica empresarial, como, por exemplo, a alusão aos “impactos” dos empreendimentos e não necessariamente às violações de Direitos Humanos, além da identificação de “afetados”, ao invés de vítimas efetivas dessas violações.

Descontentes com o resultado dos mandatos do Representante Especial, e se valendo dos espaços oficiais de articulação promovidos pelo Grupo de Trabalho da ONU sobre Direitos Humanos e empresas, criado após o término do segundo mandato de Ruggie, em 2011, a sociedade civil internacional retomou as discussões sobre a necessidade de uma normativa internacional dotada de vinculação, lançando em 2012 a campanha internacional “Dismantle Corporate Power”[2],  durante a Cúpula dos Povos, evento que ocorreu paralelamente à Rio+20. A campanha conta, atualmente, com a participação de mais de uma centena de ONGs, Movimentos e Coletivos Sociais de todo o mundo.

Verifica-se, hoje, um processo complexo de atuação da sociedade civil, que naturalmente, não conta com unanimidades ou consensos artificialmente construídos. Simplificando a equação, poderíamos afirmar que, se por uma lado há grupos favoráveis ao apoio ao processo de consulta e participação mais direita da sociedade civil e coletivos, mediante a Campanha e o processo de proposição de um Tratado dos Povos sobre Empresas e Direitos Humanos, por outro, há grupos simpáticos à iniciativa do Equador, seguida da África do Sul, de aprovação, sob os auspícios do Conselho de Direitos Humanos da ONU, de um tratado vinculante sobre Empresas e Direitos Humanos.

Ao mesmo tempo, certas organizações não vêem os dois processos como incompatíveis, ao contrário, a articulação em torno de um Tratado dos Povos poderia fortalecer o terreno da sociedade civil, assim como propiciar o amadurecimento das discussões sobre o tema, propiciando um posicionamento mais consensual e sistemático dos diferentes segmentos da sociedade civil sobre o conteúdo de futuras normas vinculantes sobre Empresas e Direitos Humanos. Na verdade, as principais críticas com relação ao apoio à iniciativa do Equador é que este Estado não poderia ser considerado um ator “confiável”, no tocante a sua tradição na defesa dos Direitos Humanos, principalmente no que tange à sua postura com relação ao Sistema Interamericano de Proteção dos Direitos Humanos. Portanto, será que apoiar a iniciativa do Equador não seria contribuir para legitimá-lo como um agente internacional na defesa dos Direitos Humanos?

Entretanto, durante a 26ª Sessão do Conselho de Direitos Humanos da ONU, no meio deste ano, aprovou-se, mediante iniciativa do Equador e da África do Sul, uma Resolução para iniciar-se um processo de discussão com os governos para elaboração de um tratado vinculante sobre Empresas e Direitos Humanos. Este resultado teve a contribuição efetiva de diversas organizações da sociedade civil, dentre as quais o TNI, Transnational Institute.

Diana Aguiar[3] , do TNI, em entrevista à agência Justicia. es, em 29/06/2014, afirmou:

“Ha sido una gran victoria”, reconoce a Público Diana Aguiar, investigadora del Transnational Institute, una de las organizaciones que han presionado para lograr la aprobación de esta resolución. Con 20 votos a favor, 14 en contra (entre ellos los de la UE y EEUU) y 13 abstenciones, la ONU se ha comprometido este jueves en Ginebra a formar un grupo de trabajo con los gobiernos de distintas naciones para crear un marco legal, un tratado que comprometa de forma efectiva a los estados a supervisar el cumplimiento de los derechos humanos.

La idea es crear un tratado vinculante para todas las multinacionales, para que no puedan incumplir derechos humanos en los países que lo ratifiquen. Lo que empieza ahora es la negociación del trabajo pero esto no tiene antecedentes. Antes solo había normas para la protección de los intereses de los inversionistas, como los tratados de libre comercio, pero no había hasta hoy ningún tipo de norma vinculante en el derecho internacional que señalara a las multinacionales como culpables. Hay muchos casos en los que se ha intentado acceder a justicias nacionales [para enfrentarse a las empresas], pero por limitaciones diversas no se ha logrado, y este mecanismo cambia la distribución de fuerzas”, asegura.”

É importante destacar que o Brasil se absteve nesta votação, o que nos remete às dificuldades de aprovação dos chamados Planos de Ação Nacionais.

Estes Planos Nacionais se associam à lógica do “dever do Estado de proteger os Direitos Humanos”, constante do primeiro pilar dos Princípios Orientadores ou Guiding Principles. Eles são documentos, cuja produção foi prevista pelo Grupo de Trabalho, que podem ser elaborados voluntariamente pelos Estados. Nestes Planos, os Estados especificariam quais as ações concretas em andamento e que seriam realizadas enquanto políticas públicas e políticas legislativas. Além disso, devem traçar diretrizes relativas ao tema para o país, tornando público o seu compromisso de implementação dos Princípios Orientadores.

Até o presente momento, poucos países já publicaram seus Planos Nacionais de Ação, sendo todos da Europa Ocidental, como Reino Unido, Holanda, Itália, Espanha, Dinamarca e Finlândia. No entanto, os Planos destes Estados não contém medidas muito concretas e efetivas para a aplicação dos Princípios, somente assumem, na sua maioria, um compromisso com a “causa” de Proteção dos Direitos Humanos, frente à atividade empresarial.

Assim, o desafio da sociedade civil brasileira é grande neste momento, no que diz respeito ao mapeamento do espaço de atuação no campo dos “Direitos Humanos e Empresas”. Como se posicionar internacionalmente, reconhecendo, ou não, ou como reconhecer, e atuar, no cenário das Nações Unidas de negociação com relação ao tema? E, internamente, qual seria o seu papel no momento em que há uma movimentação do governo para a produção de um Plano de Ação Nacional, tendo o país se abstido na votação da Resolução para um tratado vinculante?

Estes são apenas alguns questionamentos iniciais e provocações sugeridas pelo Homa.


[1] DEVA, Surya; BILCHITZ, David (Eds.). Human Rights Obligations of Business: Beyond the Corporate Responsibility to Respect? Cambridge: Cambridge University Press, p.1-26, 2013.

[2] Site oficial da campanha disponível em: <http://www.stopcorporateimpunity.org/?page_id=598>.

[3] http://www.publico.es/internacional/530936/la-ue-y-eeuu-se-oponen-al-proyecto-de-la-onu-para-obligar-a-las-multinacionales-a-respetar-los-derechos-humanos

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