Os Guiding Principles da ONU: Rumo a um Tratado de Direitos Humanos Vinculante? Um Panorama Geral

“Homa inicia  série de discussões sobre a relevância da negociação de um tratado vinculante para a observância de parâmetros de Direitos Humanos por empresas, como processo de preparação para o terceiro Forum das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos, em dezembro. Leia o artigo do nosso pesquisador, Gustavo Weiss de Resende”

Os Guiding Principles da ONU: Rumo a um Tratado de Direitos Humanos Vinculante? Um Panorama Geral

I – Breve Histórico:

A ideia de regular as chamadas empresas Multinacionais ou Transnacionais e suas eventuais violações a Direitos Humanos através de um tratado internacional abrangente já resta em evidência desde a década de 70. Pode-se perceber, ao longo do tempo, um crescimento exponencial da pressão exercida por ativistas e também de países em desenvolvimento, sendo estes últimos estrategicamente procurados pelas referidas empresas como método mais simples de ampliação de seus negócios.

A partir das iniciativas elaboradas nos anos de 1970, é possível discernir três grandes momentos – nomeados por alguns de verdadeiras “marés”[1], em um fenômeno de altos e baixos – das negociações. A primeira maré teria sido representada pelo Código de Conduta de Corporações Transnacionais das Nações Unidas, de 1990, em que divergências entre o Norte-Sul[2], isto é, países desenvolvidos e em desenvolvimento, impediram a adoção do código. Por sua vez, a segunda teria ocorrido quando da aprovação das Normas relativas às Responsabilidades de Corporações Transnacionais e Empresas de Outros Negócios  com Relação aos Direitos Humanos[3], pela Subcomissão da ONU para o Fomento e Proteção dos Direitos Humanos no ano de 2003. Esta foi entretanto rejeitada pela Comissão de Direitos Humanos e completamente descartada pelo Representante Especial do Secretário Geral em direitos humanos e corporações transnacionais e empresas de outros negócios, o que levou ao rápido recuo desta segunda maré.

Por fim, a terceira e última maré, de certa forma em andamento até os dias de hoje, teve seu início com a declaração da República do Equador na vigésima quarta Sessão do Conselho de Direitos Humanos[4], em setembro de 2013, em que esta ressaltou a importância de parâmetros internacionais vinculantes. Na supracitada declaração, não só a República do Equador, mas também outros países em desenvolvimento como do Grupo Africano, Grupo Árabe, Cuba, Venezuela, Peru, inter alia, expressam seu reconhecimento com relação aos Guiding Principles – Princípios Base – das Nações Unidas em Negócios e Direitos Humanos[5], entretanto consideram-no apenas um primeiro passo na proteção dos direitos humanos. Esta estrutura principiológica aprovada em 2011 representa a maior obra do ex-Representante Especial do Secretário Geral da ONU na questão dos direitos humanos e corporações transnacionais, John Ruggie.

A seguir, tratar-se-á especificamente dos referidos Guiding Principles, bem como da proposta liderada pela República do Equador e suas eventuais implicações práticas e jurídicas no cenário internacional.

II – Os Princípios Base da ONU e sua Formação: avanço ou retrocesso?

Os Guiding Principles aprovados em junho de 2011 possuem como fundamento sua divisão em três pilares distintos[6], quais sejam (1) um dever do Estado de proteção dos direitos humanos contra abusos, (2) uma responsabilidade corporativa de respeitar os direitos humanos, através de uma “diligência prévia”[7] e (3) maior acesso das vítimas a remédios eficazes, sejam eles judiciais ou não. Estes pilares são efetivados através de 31 (trinta e um) princípios distintos, cada qual com comentários que permitiriam uma compreensão mais ampla no que tange suas implicações legais, políticas públicas e efetivação.

Se busca, desta forma, o estabelecimento de parâmetros básicos de orientação para a postura de Estados e empresas com relação aos direitos humanos, com maior destaque para aqueles neste caso, que possuem um dever de proteção, realidade esta deveras distinta de uma mera responsabilidade de respeitar que estas possuiriam. Isto ocorre devido à acentuada participação dos acionistas no processo de discussão destes parâmetros, o que levou a severas críticas por parte da doutrina[8] não só ao referido procedimento, mas também, por consequência, ao resultado apresentado pelos Guiding Principles.

Alguns autores destacam problemas na formação do consenso – método empregado para o desenvolvimento do documento – que é caracterizado pela simples ausência de objeção formal àquilo que é proposto, tendo questões relevantes sido deixadas de fora para que o consenso fosse obtido, abafando vozes divergentes que buscavam modificações no projeto original.[9] Para tanto, até mesmo as vítimas de violações a direitos humanos foram deixadas de fora das consultas, supostamente para se evitar uma “polarização” entre empresas e vítimas nas discussões.[10] Se defende, desta forma, a necessidade de um quarto pilar nas discussões, de participação ampla na formação de parâmetros de proteção aos direitos fundamentais[11], o que é refutado por Ruggie sob o fundamento de que os Guiding Principles seriam instrumentos de “direito flexível”[12], que indicariam apenas padrões mínimos de conduta, não sendo necessária ampla participação, o que poderia impedir a formação do consenso – evidenciando uma postura inteiramente pragmática do ex-Representante Especial.

Ademais, se critica ainda a linguagem empregada nos parâmetros, “fraca” em demasia para o âmbito de proteção que os direitos humanos propõem, não se falando em violações por parte das empresas, mas apenas em “impactos adversos”[13]. Por fim, a ausência de previsão definitiva e clara de remédios eficazes para a tutela das vítimas impediria a efetivação dos direitos destas, sendo a proteção prevista pelos parâmetros considerada em muitos casos insuficiente. Isto ocorreria por não se conferir ao acesso a remédios judiciais ou extrajudiciais o status de direito humano[14].

Desta forma, mesmo após o desenvolvimento de um documento que, até certo ponto, regulamenta a tutela de direitos humanos frente às multinacionais, a forma com que este foi desenvolvido e o resultado obtido restam muito aquém das expectativas de diversos atores internacionais. Destarte surge, mais uma vez na história, a proposta de um tratado internacional de caráter inteiramente vinculante, proposta esta liderada pela República do Equador, a ser analisada na sequência.

III – Um Instrumento Internacional Legalmente Vinculante

Dados os problemas supramencionados e um contínuo aumento nos casos de violação dos direitos humanos por empresas, o Equador – aliado a outros países – passou a propor um tratado internacional de caráter vinculante, visando a clarear as obrigações das corporações transnacionais no campo dos direitos humanos[15].

Primeiramente, se faz mister ressaltar que o simples fato de ser esta uma iniciativa de um país considerado do “Sul Global” representa um avanço nas discussões acerca dos direitos humanos. Por que isto seria relevante? Pois, até este momento, o debate relativamente às empresas e aos direitos humanos foi centrada e desenvolvida a partir da figura de membros do “Norte Global”[16]. Se permite portanto, a partir de agora, até mesmo uma maior legitimidade dos princípios e regras a serem discutidos e desenvolvidos, com adesão de mais de 80 Estados e 150 organizações da sociedade civil.

Para além disso, é importante destacar exatamente o que se busca com este tratado, uma vez que uma das grandes críticas aos Guiding Principles reside no enfoque na obrigação do Estado de proteger, o que muitas vezes é olvidado na praxis. Isto ocorreria pela total ausência de interesse de alguns Estados na proteção de seus cidadãos, na famigerada “corrida para o fundo”[17], como resultado de um sistema de comércio internacional desigual, em que a necessidade de investimentos externos levaria países a possuírem o menor número possível de parâmetros reguladores para a proteção dos direitos humanos.[18]

É claro que se observa, cada vez mais, tentativas de implementação dos parâmetros da ONU – como se evidencia pela legislação interna desenvolvida pioneiramente em países, inter alia, como a Holanda, Dinamarca e Inglaterra – entretanto estes esforços são tidos por muitos, em especial ativistas, como insuficientes, havendo a necessidade de um tratado internacional de caráter vinculante.

Esta iniciativa não se encontra, contudo, livre de críticas, e são muitos os argumentos elencados por aqueles que não acreditam e/ou não possuem interesse em um tratado vinculante. Os opositores de um tratado nestes moldes indicam que os Guiding Principles da ONU possuem apenas três anos – um tempo muito curto para qualquer parâmetro desenvolvido internacionalmente – e que não só um tratado internacional demoraria muito tempo para ser discutido, mas que os países que apoiaram a iniciativa equatoriana fizeram muito pouco para buscar a implementação dos parâmetros já existentes[19]. O próprio Ruggie indica que uma segunda posição doutrinária acabaria por impedir o processo de implementação dos parâmetros criados por ele[20], e que as novas discussões a que se submeteriam os países poderia quebrar o consenso criado na elaboração dos Guiding Principles.[21]

Outros autores vão além e indicam ainda que, mesmo que tal tratado venha a ser concluído – o que por si só já será certamente difícil e demorado – devido justamente ao desinteresse de alguns Estados em implementar tais regras, não será ele ratificado por Estados relevantes no debate desta questão.[22] Desta forma, alguns autores consideram ainda que o processo de desenvolvimento de um tratado internacional vinculante acabaria por desviar o foco da mobilização internacional para algo desnecessário, que não atingiria seus objetivos propostos.[23]

Por fim, resta relevante destacar que, apesar das vozes dissidentes, o desenvolvimento do referido tratado está em andamento, a ser discutido nas próximas deliberações da ONU – como a que ocorrerá em dezembro deste ano[24] – e que sua importância não pode ser diminuída, uma vez que as lacunas deixadas pelo projeto de Ruggie são evidentes, e a tutela dos direitos humanos permanece em jogo. Resta, portanto, a necessidade de se prosseguir – ainda que lentamente – para um pacto de caráter vinculante, a fim de assegurar uma proteção mais ampla e objetiva dos direitos humanos, através de uma maior responsabilidade das corporações transnacionais e de remédios mais eficazes no amparo às vítimas.

Escrito por Gustavo Weiss, associado do Homa.


[1] Deva, em: The Human Rights Obligations of Business: Reimagining the Treaty Business, 2014. p. 1;

[2] Mimiko, em: Globalization: The Politics of Global Economic Relations and International Business, 2012. p. 47;

[3] Documento na íntegra online, em: http://www1.umn.edu/humanrts/links/norms-Aug2003.html.

Acesso em 22 de outubro de 2014.

[4] Documento na íntegra online, em: http://business-humanrights.org/sites/default/files/media/documents/statement-unhrc-legally-binding.pdf.

Acesso em 23 de outubro de 2014.

[5] Documento na íntegra online, em: http://www.ohchr.org/documents/publications/GuidingprinciplesBusinesshr_en.pdf.

Acesso em 17 de outubro de 2014.

[6] Ruggie, em: Regulating Multinationals: The UN Guiding Principles, Civil Society, and International Legalization, 2014. p. 3.

[7] Due diligence. Para mais sobre este assunto, ver Chapman, em: Conducting Due Diligence. Practicing Law Institute, 2006.

[8] Ver City University of Hong Kong and University of Johannesburg, em: International Conference on the “Protect, Respect and Remedy” Framework: Charting a future or Taking the Wrong Turn for Business and Human Rights?, 2014; e Deva, em: The Human Rights Obligations of Business: Reimagining the Treaty Business, 2014, e GPs: Treating Human Rights Lightly?, 2013;

[9] Deva e Bilchitz, em: Human Rights Obligations of Business: Beyond the Corporate Responsibility to Respect?, 2013. p. 12.

[10] Ibid., p. 10

[11] Melish e Meidinge, em: Protect, Respect and Participate: ‘New Governance’ lessons for the Ruggie Framework, 2011. p. 331.

[12] Soft Law. Para mais sobre este assunto, ver Klabbers, em: International Law, 2013. p. 25 e ss.

[13] Deva, em: Human Rights Obligations of Business: Beyond the Corporate Responsibility to Respect?, 2013. p. 97.

[14] Deva, em: Treating Human Rights Lightly: A Critique of the Guiding Principles’ Complicity in Undermining the Human Rights Obligations of Companies, 2012. p. 16.

[15] Business and Human Rights Resource Centre, Notre Dame Law School, em: Notes of the Workshop and Public Debate, 2014. p. 1

[16] Meyersfeld, em: To Bind or Not to Bind, 2014. p. 1

[17] Race to the bottom. Para mais sobre este assunto, veja Meisel, em: Governance Culture and Development: A Different Perspective on Corporate Governance, 2004. p. 41 e ss

[18] Ibid. p. 1

[19] Ruggie, em: Regulating Multinationals: The UN Guiding Principles, Civil Society, and International Legalization, 2014. p. 9

[20] Ibid., p. 10

[21] Business and Human Rights Resource Centre, Notre Dame Law School, em: Notes of the Workshop and Public Debate, 2014. p. 2

[22] Esdaile, em: Towards a legally binding treaty on human rights and multinational companies?, 2014. p. 2

[23] Taylor, em: A Business and Human Rights Treaty? Why Activists Should be Worried, 2014. p. 4

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