Principais violações | Caso Chevron/Texaco e Saramaka vs Suriname

Texto por Beatriz Braga

Com a evolução do Direito Internacional Clássico para o Contemporâneo também se modificou a relação entre os entes internacionais e os povos indígenas. O mero emprego do termo ‘povos indígenas’ ao invés de ‘populações indígenas’ já é mudança significativa que adveio com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), de 1989, visto que o emprego de ‘povos indígenas’ implica no reconhecimento de que esse grupo possui valores culturais, axiológicos e espirituais próprios, superando a ideia de um simples agrupamento de indivíduos: trata-se de direitos coletivos que devem ser reconhecidos e efetivados de forma a preservar a identidade desses povos. Nesse sentido, esta é a primeira publicação de uma série que irá tratar dos povos Indígenas dentro do quadro de embate de direitos humanos e Empresas: analisaremos quais os dispositivos, hoje, em âmbito internacional conferem proteção e garantia de direitos aos povos indígenas, principalmente no que diz respeito aos mecanismos de suporte a este corpo social frente à violação de direitos humanos.

Os povos indígenas ganharam destaque como uma força política e social atuante na América Latina, em meados da década de 80, quando grupos indígenas se organizaram na luta pela superação da ideia de integração e assimilação das normas da ‘sociedade civilizada’ e reconhecimento de que eles possuem instituições e formas de vida particulares. A luta desse povo era, e continua sendo, pela não discriminação dos direitos humanos, pelo direito a autodeterminação, bem como os direitos a consulta e consentimento prévio, livre e informado e por sua sobrevivência física e cultural. Nessa perspectiva, os órgãos do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) têm desempenhado papel de grande relevância na efetivação desses direitos, emitindo pronunciamentos muito significativos.

SARAMAKA VS SURINAME
No ano 2000, a Associação de Autoridades Saramaka (AAS) e doze capitães Saramaka em seus nomes e em nome do povo Saramaka propôs denúncia (n.º 12.338) a Secretaria da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, em face do Estado do Suriname, alegando o não reconhecimento, por parte deste, da capacidade jurídica do povo Saramaka, bem como a não disponibilização de instrumentos jurídicos que viabilizassem o acesso à justiça pela proteção de seus direitos.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos recebeu a denúncia e emitiu, em 2006, recomendações ao Suriname, as quais não foram seguidas pelo Estado, motivo pelo qual o caso foi encaminhado para a Corte Interamericana de Direitos Humanos, naquele mesmo ano. Sobre o caso, a Corte entendeu que o Estado do Suriname não cumpriu com seu dever de fazer efetivo, em nível interno, os direitos à propriedade dos membros do povo Saramaka; definiu que os povos tribais, assim como os indígenas, têm direito a titularidade dos recursos naturais usados tradicionalmente de forma a assegurar a sobrevivência econômica, social e cultural de tais povos. A Corte também estabeleceu que o Estado poderá restringir o direito à propriedade desde que tais restrições preencham requisitos como: estar prevista por lei, ser necessária, pretenda alcançar um objetivo legítimo em uma sociedade democrática e que seja garantido a participação efetiva dos membros do povo Saramaka (direitos de Consulta Prévia, Livre e Informada – CPLI), que deve ser beneficiado pela atividade.
Contudo, apesar do relevante desempenho do Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) na proteção de direitos dos povos indígenas, destaca-se que não integra a competência do SIDH, nem da Corte Interamericana, declarar a violação da Convenção 169, que é aquela que definiu os direitos coletivos dos povos Indígenas e Tribais. Essa Convenção foi incluída como forma de ampliar o alcance do SIDH quanto ao tema, funcionando como um instrumento interpretativo.
Além disso, um olhar crítico sobre o processo de efetivação desses direitos coletivos tem revelado grandes dificuldades quanto a sua aplicação. Por exemplo, quanto aos direitos de Consulta Prévia, Livre e Informada (CPLI), que pretendem garantir a participação dos povos Indígenas em discussões que os afetam diretamente e, também, sua liberdade para determinar seus valores sociais e econômicos, observa-se que os processos de consulta têm sido organizados com um formalismo excessivo que pode, em alguns casos, estar se aproveitando do “processo de participação” dos Indígenas como forma de legitimar práticas contrárias aos interesses desses povos.
Ainda, se a violação de direitos humanos dos povos indígenas por parte do Estado pode ser de difícil reparação, a situação torna- se ainda mais complexa quando as violações são cometidas por empresas.

CASO CHEVRON/TEXACO
Como já tratado anteriormente pelo Homa, o caso Chevron é um dos mais substanciais a demonstrar a capacidade das empresas transnacionais em causar danos, violar direitos humanos e não serem responsabilizadas por nada disso.
A empresa exploradora de petróleo, Texaco, se instalou na Amazônia Equatoriana na década de 60, onde permaneceu por 30 anos, quando terminou suas atividades deixando para trás grande quantidade de material tóxico que foi despejado na natureza, contaminando os rios e os solos da região. Além dos danos ambientais, o material tóxico provocou muitas mortes, o aumento no número de casos de câncer e outras doenças e, até mesmo, a extinção de tribos indígenas. A ação ajuizada nos EUA, país de origem do Texaco, foi extinta sem a resolução do mérito. Quando nova ação foi ajuizada, agora no Equador, em 2003, um processo que perdurou até 2012, apesar de a empresa ter sido condenada a pagar 8,6 bilhões de dólares pelos impactos, a época de execução da sentença, a Texaco, que fora incorporada pela Chevron, já havia retirado seus bens e patrimônios do Equador.

Diante do exposto, o Direito Internacional pode ser grande aliado na luta dos Povos Indígenas pela proteção de seus direitos, a Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas (DDPI), aprovada em Setembro de 2007, deixa explícito que ‘os povos indígenas são iguais a todos os demais povos e reconhecendo ao mesmo tempo o direito de todos os povos a serem diferentes, a se considerarem diferentes e a serem respeitados como tais.’, determina que ‘Os indígenas têm direito, a título coletivo ou individual, ao pleno desfrute de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais reconhecidos pela Carta das Nações Unidas, a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o direito internacional dos direitos humanos’, bem como reconhece que ‘Os povos indígenas têm direito à autodeterminação. Em virtude desse direito determinam livremente sua condição política e buscam livremente seu desenvolvimento econômico, social e cultural’. Assim sendo, o Direito Internacional já pode ser mobilizado, ao menos como arcabouço teórico em prol dos povos indígenas, mas isso é ainda muito pouco. Como já dito, o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH) não tem competência para julgar violações à Convenção 169, usando-a apenas como recurso interpretativo e, ainda que pudesse fazê-lo, ele só tem eficácia em relação à responsabilização de Estados.

Quando falamos em responsabilização de empresas, os mecanismos existentes atualmente são ainda mais frágeis. Por isso, é tão importante a mobilização dos povos indígenas, das instituições e movimentos sociais que os representam, na elaboração de um Tratado Internacional de Direitos Humanos e Empresas que tenha caráter vinculante, que estabeleça obrigações de Direitos Humanos para as corporações transnacionais. Se alcançarmos essa conquista, por meio de mecanismos como os de extraterritorialidade, cooperação obrigatória, entre outras defendidas pelos adeptos das normas vinculantes, entre os quais o Homa se insere, será possível impedir que casos como o da Chevron se repitam, e estaremos alguns passos mais próximos de conseguir formar uma rede real de proteção e garantia dos direitos dos povos indígenas, tanto individuais como coletivos.

Referências:

UNIDAS, O. DAS N. Declaração das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas Rio de
Janeiro Nações Unidas, 2007.

ISA, Felipe Gómez. A Convenção 169 da OIT: origem e conteúdo. Revista Aportes, número 22, p. 4-5,
Setembro, 2020.

NOGUERA, Antonia Urrejola; NEIRA, Elsy Curihuinca. Avanços e desafios do direito à consulta e ao
consentimento prévio, livre e informado à luz do Sistema Interamericano de Direitos Humanos.
Revista Aportes, número 22, p. 6-7.

HOMA. O Processo de Homologação da Sentença do Caso Chevron no Brasil – Uma Análise aa
Ação Sec Nº 8542 e a Importância de um Tratado Internacional Sobre Empresas E Direitos
Humanos. Fevereiro, 2018.

HOMA. As Obrigações dos Estados de Origem suas Obrigações Extraterritoriais nas Violações de
Direitos Humanos por Corporações Transnacionais. Junho, 2016.

MARÇAL, Sílvia Silva Vargas. Análise da Sentença Saramaka vs Suriname sob a Perspectiva de
Clifford Geertz: Direito E Antropologia Por Um Diálogo Entre Humanidades. Direitos Culturais,
Santo Ângelo, v.6, n.10, p.141-158, jan./jun. 2011.


¹ Os Saramaka foram considerados pela Corte como comunidade tribal por possuírem características específicas e se regularem através de suas próprias normas, costumes e tradições.

²A Corte Interamericana de Direitos Humanos foi prevista no capítulo VIII da Convenção Americana de Direitos Humanos, é composta por 7 (sete) juizes, nacionais dos Estados membros da Organização, e possui competência para julgar os casos, submetidos pelos Estados partes ou pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que violem a Convenção Americana de Direitos Humanos.

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